“A velhice é a síntese da experiência e a maturidade da Vivência”.
PSICOMOTRICIDADE:
FILOGÊNESE, ONTOGÊNESE E RETROGÊNESE
O termo “psicomotricidade”, semanticamente, nos traz referência aos mecanismos mentais, intelectuais e emocionais acrescidos de movimento, gesto e ação. A justaposição dos dois termos leva-nos ao dualismo. A Organização Mundial da Saúde, vai além desse dualismo e estuda profundamente o desenvolvimento humano.
Assim como somos semelhantes, não somos iguais. Dois seres humanos, por mais características similares que possuam, não são iguais. São seres únicos, com história própria e maneiras de ser e de fazer diferentes dentre si. O processo fisiológico é o mesmo para todos os indivíduos, o estímulo também pode ser o mesmo. Porém, a resposta é sempre diferente para cada um, pois o caminho de ida e volta, desde a recepção do estímulo até a execução da resposta, será necessariamente marcado pela história de vida deste indivíduo.
O estímulo será percebido com maior ou menor intensidade. A emoção provocada poderá modificar totalmente a resposta, bloqueando-a, exacerbando-a ou diminuindo-a, ou seja, a história de vida particular de cada indivíduo dá a tonalidade de sua expressão no mundo. Por exemplo, todos nós aprendemos a andar por volta de um ano de idade, mantendo a postura ereta. Desafiando a gravidade, trocamos os primeiros passos, no início, lentos e inseguros, mas com os estímulos e incentivos familiares, começamos as primeiras experiências de liberdade, podendo ir para onde quisermos com as próprias pernas. Este movimento, depois de experimentado suficientemente, torna-se automatizado, isto é, não precisamos estar conscientes da ação em si e o andar será característico de cada um. Podemos reconhecer uma pessoa ao longe, pelo seu jeito de andar, porque ela traz consigo todas as marcas das ansiedades, angústias, medos e culpas que colaboraram na aprendizagem de tal conduta.
Temos, portanto, uma distinção clara entre motor e psicomotor. Quando nos referimos a uma questão motora, estamos falando somente da mecânica do movimento, isto é, do funcionamento dos músculos, tendões, ossos e articulações. Quando usamos o termo “psicomotor”, nos referimos à maneira pela qual o indivíduo se expressa no mundo. A consciência de seu próprio corpo, a significação de seus gestos, a comunicação com o outros e sua adequação no tempo e espaço.
Para entendermos muito mais a psicomotricidade temos que começar nossos estudos pela filogênese (desenvolvimento da espécie humana), passar pela ontogênese (desenvolvimento da criança) e chegarmos à retrogênese (“retrocesso do desenvolvimento” humano).
A psicomotricidade é a ciência do homem. Considera os aspectos biológicos, antropológicos, sociológicos e culturais, respeitando a abordagem filogenética (bioantropológica) e ontogenética (psicobiológica) do desenvolvimento da espécie humana. O desenvolvimento da criança recapitula, acelera e qualifica o da espécie humana. Ele compreende todas as mudanças contínuas ocorridas desde a concepção ao nascimento e do nascimento à morte.
Na evolução das espécies – dos animais invertebrados aos vertebrados – registra-se uma história de modificações e adaptações promovidas pelas interações endógenas e exógenas dos seres vivos com o meio ambiente. Com a informação genética responsável pelo controle dos fatores inatos e adquiridos em todas as espécies, a evolução se realiza com transformações anatômico-funcionais e modificações cerebrais que culminam no primata e no homem.
A ontogênese recapitula a filogênese ao verificarmos o embrião humano como um retrato de várias espécies, em suas frases de metamorfose. Os processos evolutivos, maturacionais e hierarquizados ocorrem num plano biológico e social, especialmente nas relações entre o psiquismo e a motricidade. O social é biológico e, consequentemente, uma condição vital e indispensável da ontogênese. O biológico não se opõe ao social, os dois fatores não se reduzem um ao outro, não são sequer incompatíveis. O biológico e social coexistem dialeticamente. O ser humano constrói como um ser social. Sem a presença do adulto socializado, o recém-nascido não responde as suas necessidades de crescimento e de desenvolvimento da motricidade infantil depende fundamentalmente da motricidade (conduta) adulta. Fonseca (1998, p.12) declara:
“No envolvimento da mãe, pré-estruturam-se os reflexos, ou seja, a memória da espécie. No envolvimento com a família, desenvolvem-se as primeiras aquisições motoras e linguinticas. No envolvimento com a sociedade, evoluem as primeiras aquisições psicomotoras e psicolinguínticas”.
A motricidade e, consequentemente, a psicomotricidade visam uma concepção holística do desenvolvimento humano. Ela coloca em jogo várias estruturas de construção: sinergias inatas edificadas a partir da filogênese e sinergias automatizadas e complexas, apropriadas a partir da ontogênese. É pela motricidade que a inteligência humana se desenvolve, materializa-se, constrói-se e edifica-se. A motricidade reúne em si dois componentes ontogenéticos fundamentais: a diferenciação estrutural do sistema nervoso central e a aquisição progressiva de padrões comportamentais, da sensação à conceituação, passando pela percepção, pela retenção e pela simbolização. Tem, também, papel importante na estruturação, organização e regulação da linguagem humana, fazendo-nos compreender as razões da evolução do gesto à palavra, do ato ao pensamento e do ato reflexo à atividade de reflexão.
A retrogênese é decorrente de uma involução, geneticamente programada para se desintegrar. Nascemos e renascemos muitas vezes, seguindo sempre uma dinâmica organizativa dentro do próprio cérebro, onde ocorrem migrações, proliferações, mortes e interconexões seletivas de células. Estas permanentemente reorganizam e remodularizam os mecanismos existentes, não destruindo as estruturas antigas, mas sim, desenvolvendo-se em estruturas completamente novas.
RETROGÊNESE – UM PROCESSO A SER VERIFICADO
Como vimos, o conceito de retrogênese está intimamente relacionado ao conceito da evolução humana. O desenvolvimento humano é um processo contínuo, iniciado na concepção, seguido por metamorfoses sequencializadas até a morte de tal forma que cada estágio apresenta um determinado nível de maturidade, vence vários obstáculos e realiza várias aquisições essenciais para lidar com as realidades existentes. Posteriormente evolui para uma “desmaturidade”, que se inicia na terceira idade.
As complexas capacidades inatas transformam-se em novas fontes de informação por meio de novas aprendizagens, consubstanciando-se em si o fator casual do desenvolvimento.
A evolução humana contém uma reorganização do nascimento à morte, desde criança, passando pelo adulto até o idoso. Em cada fase há algo sazonal idêntico à sequência das estações: primavera (criança), verão (jovem), outono (adulto) e inverno (idoso). Portanto, a evolução caminha para a involução, num processo inverso. Tudo está programado para se desintegrar. A chamada “involução”, isto é, a mudança de comportamento intríseca no período final da vida, implica numa deteriorização, peça por peça, de todos os nossos sistemas, propriedades e funções. Essas transformações são encaradas patologicamente, mas representam o efeito inevitável do avanço da idade. Na sequência dos fatores de desenvolvimento há a noção inversa, que é a retrogênese humana.
As grandes mudanças, da infância à adolescência, desde a vida adulta até a velhice, são inevitáveis. Elas atingem todas as áreas do comportamento humano e, naturalmente, a psicomotricidade.
A senescência, como antítese da adaptação e da evolução, implica numa rede de mudanças desintegradas e progressivas, bioquímicas, patológicas, biológicas e comportamentais, que, progressivamente acumuladas, culminam na morte. A deteriorização seletiva ocorre em diferentes ritmos e zonas do cérebro. O empobrecimento neuronal causado pelo tempo conduz a um declínio funcional e irremediável no envelhecimento normal. Problemas de memória, humor, concentração, atenção e vivacidade, intelectual tendem a emergir com o tempo. As perturbações da memória imediata e de médio termo são características enquanto que se verifica um apego ao longínquo. Essas perturbações são normalmente acompanhadas de: insônias, perdas de julgamento, egocentrismo, exploração assistemática de objetos e situações, inércia afetiva, incontinência, dependência, hipotonia etc., traduzindo uma espécie de progressão (a meninice). O processamento das informações visuais, auditivas e tátil-cinestésicas também sofre desintegrações relevantes. A inteligência torna-se mais cristalizada, mas os fatores verbais resistem mais. Enfim, desorganização e desincronização motora, perda da memória, falta de iniciativa, modificações afetivas, flutuações de tristeza, isolamento social e segregação familiar favorecem um quadro de degradação mental e retrogênese psicomotora.
A evolução do cérebro, no seu todo filogenético e ontogenético, envolve uma transição do mais organizados aos centros superiores que vão se organizando pela vida afora; do mais simples ao mais complexo; do mais reflexo ao mais voluntário, pressupondo uma organização vertical ascendente.
Na obra do professor Dr. Vitor da Fonseca (1998, p.351-5) encontramos os estudos de Luria, referentes à organização funcional do cérebro. Tal organização resulta da interação conjunta e hierarquizada de três blocos funcionais, dependentes das funções que comandam o trabalho cerebral, implicando em todas as formas complexas de comportamento, nomeadamente na organização psicomotora. Para Luria, as formas complexas de comportamento têm origem social, a partir da qual se desencadeiam processos que elaboram, armazenam e conservam a informação do mundo exterior programando e controlando ações que materializam intenções, obedecendo a uma organização estruturada, autorregulada e hierarquizada no cérebro. Experimentalmente, Fonseca (198) verificou, em termos ontogenéticos, que a organização psicomotora, de acordo com o modelo neuropsicológico de Luria, evolui do primeiro ao terceiro bloco funcional, ou seja, da tonicidade à praxia fina, sugerindo a evolução maturacional do córtex humano, parte do tronco cerebral (primeiro bloco) para os hemisférios cerebrais (segundo e terceiro blocos), dando significado ao princípio da hierarquia estrutural do cérebro.
Se a evolução humana contém uma dinâmica organizativa e funcional do cérebro, onde ocorrem transições e modificações, que tendem a evoluir das estruturas inferiores às superiores segundo uma organização vertical ascendente (do primeiro ao terceiro bloco), e, se a evolução está pré-programada para se desintegrar, isto é, retroceder das estruturas superiores às inferiores, segundo uma organização vertical descendente e de sentido contrário, então a retrogênese psicomotora deve seguir uma desmontagem declinativa do terceiro para o primeiro bloco. Ou seja, a deteriorização da organização psicomotora inicia-se com a praxia fina, a seguir com a praxia global, nos desestruturamos espaço-temporalmente, perdemos a noção do corpo, o equilíbrio e, por fim, a tonicidade.
A vida, como a evolução, é uma implacável e inexorável sequência de experiências, relevando o nosso patrimônio filogenético e evidenciando a nossa competência ontogenética, que, num momento determinado, se esvanece e regride – da filogênese à retrogênese, passando pela ontogênese.
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